PABLO ORTELLADO: PERDEMOS A DECÊNCIA?

Por Pablo Ortellado

Logo após o ataque do Hamas a Israel, mensagens de apoio à causa palestina tomaram as mídias sociais. Primeiro, vieram as chocantes imagens de jovens massacrados num festival de música, famílias inteiras assassinadas em fazendas e kibutzim, sequestros de crianças e idosos. Minutos depois, chegaram mensagens entusiasmadas de apoio à causa palestina — vindas de ativistas, de lideranças políticas e de parlamentares de esquerda. Como chegamos ao ponto em que pessoas de bem celebram, como um ato justo de resistência, o terrorismo, o assassinato frio de civis?

Podemos supor que essas mensagens apoiaram apenas a “resistência palestina”. Mas o Hamas não são os palestinos. O Hamas nem representa os palestinos — nem sequer os da Faixa de Gaza. O Hamas é um agrupamento político teocrático, não democrático, que não reconhece o Estado de Israel e pratica o terrorismo como forma de luta. Governa de fato a Faixa de Gaza, mas não se pode dizer que é um governo legítimo. O Hamas chegou ao poder por meio da via eleitoral em 2006, expulsou seu concorrente secular (o Fatah) e governa o território desde então sem eleições periódicas.

O movimento que vimos não foi uma explosão espontânea de revolta da população civil palestina, foi uma ação militar friamente planejada por um agrupamento político-religioso para atingir propósitos políticos. Ao apoiar a ação “de resistência”, não se apoiam os palestinos, mas o Hamas.

.Tampouco se apoiam os palestinos ao apoiar uma ação contrária a Israel. A crítica às políticas de Israel para a Palestina inclui muitas posições, e o terrorismo teocrático do Hamas é a pior delas. Há um sem-número de motivos para criticar a política israelense que transformou a Faixa de Gaza numa espécie de prisão a céu aberto e que aos poucos ocupa todo o território da Cisjordânia com sucessivos assentamentos ilegais. Todas essas críticas são necessárias. E nenhuma delas precisa levar a apoiar o terrorismo.

Isso posto, podemos discutir por que, afinal de contas, precisamos nos importar com o apoio ao Hamas se estamos no Brasil, tão longe da guerra. Importa pouco para o desenlace do conflito se o MST, o PT ou algum parlamentar brasileiro faz ou deixa de fazer uma declaração de apoio às ações do Hamas. A importância dessas declarações está noutro lugar.

As declarações sinalizam uma complacência com a violência e com o terrorismo quando se considera que o adversário ou as ações do adversário são ilegítimas. O que preocupa nas declarações de apoio é que uma ação bárbara que assassinou friamente centenas de civis possa ser considerada legítima ou aceitável porque se entende que Israel oprime os palestinos.

O raciocínio que leva a apoiar a ação do Hamas porque se condena a política de Israel não é diferente daquele que leva a apoiar as violações de direitos humanos na Venezuela porque se condena o golpismo da oposição. Também não é diferente daquele que apoia a invasão do Congresso brasileiro porque se considera que o STF e o TSE são parciais.

Toda essa chocante onda de apoio à causa palestina no contexto das ações do Hamas preocupa porque, em nome do anti-imperialismo, jogamos fora o respeito aos mais fundamentais princípios de humanidade. E nada disso muda — na verdade, se agrava — se, nos próximos dias, viermos a testemunhar, do outro lado, apoio aos abusos das Forças de Defesa de Israel contra a população civil na Faixa de Gaza. Para enfrentar os adversários políticos, não estamos apenas fechando os olhos aos abusos — estamos renunciando à nossa decência. #Opinião

O GLOBO, EM 14/10/2023

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